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[X]

na memória: a S.
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Era a primeira vez que ia estudar para fora. Não deixei o ninho muito triste, lembro-me de andar bastante entusiasmada, num misto de excitação e medo, por todo o horizonte desconhecido que já espreitava.
Apesar de agnósticos, os pais, percebendo já uma das facetas do feitio da filha, optaram por deixa-la à guarda de umas senhoras vestidas de azul, mais devotas à hipocrisia que à solidariedade que pregoavam.
Mas o juízo era pouco, a curiosidade muita e a vontade de contrariar o que aquelas senhoras de azul simbolizavam ainda era maior. As descobertas nesse ano eram diárias e a S. foi a melhor delas. Não me recordo do primeiro encontro, terá sido provavelmente no café dum centro comercial com alguma amiga em comum, já que para a altura vivíamos em universos muito diferentes, quase rivais: frequentava o 10º ano no liceu 'de baixo' (o dos gandulos) e ela o 11º no liceu 'de cima' (dos queques).
Ela poderia ter sido uma miúda lindíssima se não fosse quase anoréctica, o ar frágil e os enormes e brilhantes olhos azuis onde tudo cabia, foram-me, aos poucos, conquistando confiança. Com ela conheci os prazeres de uma conversa desregrada, os medos, os tormentos, as inquietações próprias daquela idade relativizavam-se quando me ouvia: a presença dela aliviava-me de qualquer peso – e era recíproco. De cada vez que tinha um 'furo' de duas horas, atravessava a cidade só para passar os dez minutos de intervalo com ela. Foi numa dessas vezes que me disse entre lágrimas que a mãe a odiava por gostar de mulheres. Não percebi logo à primeira e imagino agora, na confusão em que devo ter andado esse dia todo porque é ao fim do dia, num jardim, que recordo o resto da conversa: a minha resistência à ideia: se fossemos todos assim o humano extinguia-se… mas ela convenceu-me que não era apenas possível e natural, mas especial. Foi quando me contou a verdadeira história do seu coração partido - o meu iria partir-se em breve: pouco tempo depois dei-me conta que estava irremediavelmente apaixonada por ela. A coisa tinha a forma de um vulgar namoro tímido de adolescente: trocávamos longas cartas quase diariamente e passávamos horas ao telefone. Depois vieram as dificuldades: os telefonemas foram escutados pela freira telefonista e as cartas lidas – o que só fortaleceu o nosso amor proibido.
A noite em que fugi para estar com ela foi o princípio do fim: estávamos quase no fim do ano lectivo e a expulsão implicou-me, para além de um controlo cerrado, quatro horas de viagem diárias em autocarro, e assim, pouco tempo e oportunidades tinha para estar ou sequer falar com ela. Só a vi mais duas ou três vezes, na última disse-me que estava de partida para Lisboa onde iria continuar a estudar. Foi um vazio difícil de digerir. Na memória um beijo leve, dado com um dorme bem e um longo abraço que se seguiu. Só fazia doer ainda mais.
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Para quem conhecia apenas as normas, a descoberta da homosexualidade abalou-me bastante: andei quase dois anos mergulhada numa solidão existencial. Hoje percebo que foi com ela que desenvolvi a capacidade de amar qualquer pessoa, de qualquer forma, sem encalhar em estereótipos. E é, sem sombra de dúvida, uma das estrelas mais brilhantes no meu universo simbólico.
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